Gilson Guimarães da Silveira
Textos

OUTRO DIA EU OUVI A SERIEMA CANTAR
 

 No início da madrugada (uma dessas deste abril que vem cumprindo obrigações, não suas, mas, do março transato*, obrigações de despejar as últimas bacias das águas do verão), estava eu  quase me pondo em sossego quando um ribombo inesperado (coisa do São Pedro!... de repente, ele resolveu arrastar uns móveis de pés feltrados - pois não clareou faísca), ribombo tão grande que me fez instintivamente exclamar: "- Vai chover!"
 
...E choveu mesmo.
 Do estrondo ao ato contínuo passaram-se, no máximo, trinta e sete segundos. (É! Se eu disser "meio minuto", ou "quarenta segundos", estarei arredondando e faltando com a verdade, pois o evento se deu entre trinta e cinco e trinta e sete segundos).
 Choveu de  fazer barulho de vento - de vento, foi o que supus, naquele instante; porque, ao abrir um pouco a janela vi (se se pode ver com os ouvidos) tratar-se, mesmo, de chuva, que principiara a cair forte no bairro adjacente e me fazendo crer estar se aproximando, molhando já os telhados vizinhos, no meu bairro. Só depois, passados (pelos meus cálculos) dois minutos e dezessete segundos é que as rebarbas do aguaceiro começaram a tamborilar por aqui, e logo se assanharam, e logo caíram mais pesadas durante nove minutos e cinco segundos... E pronto!... E foi só!... parando em seguida, de vez.
 Entrementes, fiquei alerta. Não confiando na luz de emergência, que ora funciona ora não, peguei a lanterna de leds. Estava carregada e eu podia ficar tranquilo, caso houvesse blackout - que acabou não acontecendo.
 (...)
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 O dia amanheceu claro.
 Saí de casa depois do meio-dia, desci a ladeirinha do jardim do adro e, mais adiante, já me aproximando da avenida, ouvi uma seriema cantar. "- Que beleza!" - exclamei para mim. - "...Pensei nunca mais fosse ouvi-las." 
 Desde meus primeiros aniversários eu sabia que as seriemas cantavam sempre em dois montes fronteiros um do outro. E essa, que eu a ouvia bem claro, só podia estar naquele à minha frente.
 Levantei os olhos (que os tinha até então voltados para o chão, atentos aos buracos das ruas e calçadas, retrato do desmazelo político) e me surpreendi: "- Onde está o morro?!... Não o vejo!"  
 ...Desaparecera! Desaparecera também o sobrado do piano de cauda!... Voltei o corpo: atrás de mim desaparecera o outro morro; dele só avistei uma nesga!...
 A seriema cantou de novo. Eu a ouvia; sabia que estava perto. Lembrei-me da chuva da madrugada: "- A bichinha está feliz; a chuva espevitou seus alimentos. Vai fazer uma festa!"   
 Cantou só mais uma vez. Calou. 
 "- E a outra? - perguntei-me.
 ...
Então, não havia outra, no monte oposto, para responder o canto da primeira, como geralmente fazem?!...
 ...Não. Ou, se havia, talvez uma modulação diferenciada naquele cantar a alertara: "- Não venha. Nada encontrará aqui com que possa se alimentar!"...
  (...)
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  Aqui, nesta terrinha de mentes embotadas, o horizonte está ficando cada vez mais curto: um lugar já por natureza cercado de montanhas, no entanto, constróem-se, nele, prédios que se alteiam formando barreiras, como se querendo transformar, o lugarzinho, numa cidadela medieval apertada entre muros, comprimindo assim cérebros também já por natureza comprimidos, miúdos qual miolo de noz...   
 ...- Hasta cuando?... Hasta siempre?!...
 
(...)
 A pobre seriema deve ter encontrado, no resto de pasto outrora viçoso, somente cacos de lâmpadas, pedaços de fios, garrafas pet, pregos, parafusos, papel higiênico, absorventes, preservativos usados...
 Acho que não voltará mais.
 ...Que pena!

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(*) "Transato" - O termo (de pouco uso, mas que entretanto usei) estava na prateleira mais empoeirada e mofada do meu sótão portátil. Sacudi-o e limpei-o, antes de usá-lo; portanto, não deverá provocar alergia. Fiquem descansados.

                                    
  

Abr., 15.2012 
   
Guimaraens Esse
Enviado por Guimaraens Esse em 15/04/2012
Alterado em 30/12/2015
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