Gilson Guimarães da Silveira
Textos
 
DAS ILUSÕES DOS SERES

                                         --1--


  Aconteceu no outono.
  Eu lia, quando um  pequeno inseto pousou no aro dos meus óculos. Imediatamente, acudiu-me a minha ciosa mão direita que, largando-se do livro, e num gesto brusco (como arma levantada e agitada no ar), obrigou-o a afastar-se de mim - pois, no átimo, pareceu-lhe ser, aquela audaciosa criatura asada, um marimbondo ou uma dessas moscas pouseiras inconvenientes. Arrisco dizer até, que naquele momento a extremada mão o tenha feito considerar que tanta ousadia poderia lhe ter resultado séria consequência; e não estarei exagerando; afinal, a audácia do abusadinho fizera-o correr grande risco de quedar-se jazido, mortinho da silva, abatido pela fidelíssima defensora.

  Espantou-se (claro!) o pobre bicho, com a desmedida atitude de quem, dono daquela mão, desde criancinha sempre admirou, e admira ainda, as abelhas-cachorro, eis outro não era o incômodo voador.
  Felizmente, eu, onipotente senhor da desastrada arma, ao perceber de quem se tratava o suposto importuno indivíduo, logo cuidei de corrigir ato tão agressivo da insana guardiã exigindo-lhe respeito e consideração para com a visitante - que, entretanto, apesar do susto primeiro e, todavia, arriscando-se a tombar definitivamente inerte, continuava e mais continuava insistindo (segunda, terceira, quarta e seguidas outras vezes) em pousar nos benditos óculos meus. 
  Agora, debalde se fizessem mais insistentes, porém mais suaves, os gestos da contrariada mão, esta, que a mim queria mostrar-se acalmada (tal era a leveza dos seus movimentos, embora eu não engolisse o engodo...), não conseguia demover a abelhinha do firme propósito de ali permanecer sobrevoando as lentes (cujas, ressalto aqui, me foram receitadas há mais de três anos para facilitar as leituras e desde então ainda não precisaram ser trocadas!...). (Mas, continuemos...)
  Daí, plenipotenciário que me julgo para exercer pequenos atos de mando, impus-me firmemente ao meu instinto de defesa, não admitindo ser por ele dominado por maior tempo, eis que ele (um tresloucado!, de certo conluiado ao tal de "reflexo condicionado") foi quem de pronto agira contra o animalzinho. Com isso, com tal vontade férrea, eliminei qualquer possibilidade de renascer, na sobredita manzorra, o ímpeto de praticar novas diabruras... E para não deixar dúvidas mostrei minha benevolência, num ato louvável: ofereci ao diminuto volante a falangeta do indicador da própria mão hostil, personagem rude essa mão que, pouco antes, pela brusquidão impensada, se lhe assemelhara manopla gladiadora. Pôde, por isso, a abelhinha pousar em campo seguro, enquanto eu, ainda que por mínimos segundos, pude observar os movimentos da pequenita já agora tranquilizada e (o que mais?) esperançada em obter, na doçura descoberta no lambe-relambe da minha quase mumificada cutícula, aquilo que necessitava para levar à colmeia distante, como fruto do seu trabalho diário (...oh!, mas que ingenuidade da irracional coisinha de Deus! Que esperança cotó, a sua!... Era como se dessa prospecção na pele artificialmente perfumada pudesse colher algo de proveitoso!...)
  (...)
  Eu lia junto à porta da varanda, e lá fora ventava.
  A abelhinha foi trazida pelo vento, e acabou por me encontrar meio escarrapachado, à fresca e quase ao cochilo. Não fosse pela circunstância da manhã-tarde ventosa, creio, ela não teria se esbarrado em mim. Veio a pequerrucha empurrada sala adentro. Foi esbarro casual, se vê; e como eu havia recente feito a barba, a fragrância da água facial que me perfumava o rosto na certa foi o que a atraiu tanto, após o circunstancial encontrão.
  Ora, tendo chegado ela, ali, acidentalmente, no entanto não desleixou, a  esforçada e trabalhadora operária, dos seus princípios: tratou de não perder tempo: se havia algo doce no ar (ela o notara) justo seria, então, insistir em pequenas revoadas ao redor da minha carantonha, até encontrar o que procurava. (Foi quando, portanto, pela sua insistência, lhe permiti achegar-se e pousar-se em mim.)
  Recordou-me, o breve momento, do menino que nas manhãs e tardes de sazões remotas ficava, às vezes, na cozinha, junto ao fogão de lenha esperando as duas coadas do café, quando, aí, apareciam as minúsculas e negras figuras  voluteando, adejando ao redor dos vapores, miúdos seres que o garoto relacionava aos contos infantís e que, como ele, expectavam, para depois, retirado o bule fumegante da segunda passada, terminada a tarefa da cozinheira, pousarem-se, elas, na borda do coador para cumprimento das tarefas a que se obrigavam.
  ...Eram seres compreensíveis e compreendidos, naquela época em que também viveram; seres com quem se podia dialogar, conversar, sem, com isso, causar espanto... Eram abelhinhas-cachorro... quiçá fadas crianças fantasiadas... cuja maldade maior se constituía, só, no enrolarem-se acidentamente nos cabelos dos mais distraídos passantes; nada mais que isso.
  Por minguados segundos pude observá-la a sondar minha velha, judiada, carcomida e árida epiderme digital; e vi, no pouco tempo, suas corbículas ainda sem qualquer vestígio de matéria prima que tinha de obter para levar ao ninho - fosse pólen, fosse resina, fosse outra coisa mais. "- Outono... Não terá encontrado qualquer flor; mas árvores, estas têm em abundância por aqui; por que estão vazias suas pernas? (...) Parece tão novinha!... Talvez esteja em seu primeiro voo!..."  - monologuei. O monólogo, entretanto, não se expressou por boca infantil, de um menino, como até há pouco eu fora; monologou o adulto, o "homem feito", de barbas rapadas... Assaltaram-me cuidados lidos em breves textos técnicos sobre as abelhas-cachorro: "Trigona spinipes¹: ...agressiva; ataca outras abelhas sem ferrão; invade colmeias (...) brigas (...) mortes (...) ataca flores e folhas novas, a casca do tronco; retarda o crescimento das plantas (...)."
  Mas, contive-me.
  ...Fosse outro, outro que não eu, que não dominasse mão e instinto como dominei os meus, outro que apenas tivesse conhecimento de rápida literatura sobre o pequeno inseto, e ela teria sido imediatamente esmagada, pelo simples fato de também estar escrito nas súmulas: "...ameaçada, penetra nas narinas e ouvidos da vítima." 
  Contive-me. Só não a esmaguei porque a criancice em mim impediu-me de fazê-lo: o menino conteve o adulto, a quem havia ocorrido a dúvida: " - ...E se é verdade tudo de ruim que se diz dela?..."
  Antes que o mal crescesse, antes que o homem resolvesse eliminá-la (ela já entrara em zen, tão sossegada estava, quase imóvel, nas lambidelas), a criança, prevendo o que poderia acontecer, convenceu à mão pôr-se fora da porta para que o vento a levasse, rápido, rápido...
  Houve resistência. Suas asas quase se reviravam, forçadas pelo vento. Parecia ter fincado pé, decidida a continuar na improfícua labuta. A disfarçada mão começava, de novo, a ficar impaciente; mas apesar disso, seu polegar, num discreto movimento, forçou a "avezinha" até a ponta do indicador, na tentativa de fazê-la voar. Resistiu ainda; porém, sentindo-se inconveniente remexeu-se e fez menção de sair... mas para o interior da sala! onde avistara (quem dirá não?) o vultoso buquê de rosas brancas e vermelhas sobre a mesa. Não; não podia continuar mais; era abusivo. Num derradeiro gesto, até para livrá-la, polegar e indicador se contrairam, arquearam e, feito mola, soltaram um peteleco - não forte e covarde, que pudesse ferir a coitadinha; porém suficiente para afastá-la do perigo. 
  ...E ela se foi, levada por uma rajada mais forte.
  (...)
  Que terá sido dela?...
  Tivesse entrado na sala, como intentara, não conseguiria tirar nada daquele magnífico buquê de rosas artificiais e não perfumosas.
  O menino ficou penalizado, mas com a sensação de ter cumprido uma boa ação.
  O homem... nem se preocupou.

                                         --2--

  Aconteceu no início do inverno.
  Num dia claro, de céu azul, sem nuvens, eu caminhava na praia, bem junto ao mar, quando notei, ao recuo da onda e a uns cinco passos de mim, algo que se mexia na areia molhada. Nas franjas daquela onda que então se contraía e que logo voltaria em refluxo, rebrilhava à luz um colar de bolhas de espuma, como extensa gargantilha de diamantes.
  No momento em que o evanescente cordão ainda recuava e, acariciante, cheio de reflexos, repuxava miríades de grãos de areia que ele em seguida iria trazê-los de volta num infindo rola-rola brincalhão; exatamente naquele momento, de resquícios de onda fugidia que escarvava suavemente o espaço de chão diante de mim, deu-se à vista algo parecido a minúsculo tatuí a se esconder.
  Atentei, e, de relance, vi bem: em desespero, pernas e asas em remeximentos desordenados, cabeça e quase metade do corpo enterrados na lama arenosa, debatia-se talvez um marimbondo, talvez uma vespa. 
  Agachei-me ligeiro, antes que a próxima onda enovelasse o desgraçado vivente e o arrastasse para sempre; consegui tirá-lo da situação aflitiva. Levantando-o com a ponta do dedo deixei-o equilibrado na unha do indicador da minha diligente mão esquerda. Por dois, três, ou sei lá por quantos minutos fiquei parado, observando, esperando que o animalzinho se restabelecesse.
  Lambuzada de areia, pegajosa de sal, sumamente encharcada, a abelhinha (eis outro não era o infelicitado ser) permanecia imóvel em minha ciosa mão, semelhando gente que toma fôlego após escapar de peripécia inesperada. As pernas, tinha-as bem firmadas na tábua da salvação, meio abertas, distanciadas umas das outras. A cabeça, arriada, era dum maratonista que, ao fim da prova, se ajoelhara e encostara a testa no solo, para  agradecer a quem lhe dera forças.
  Ela, ali, imóvel, era a figura debilitada dum boxeador esfalfado, os braços caídos depois da luta, as cordas do ringue sustentando  o peso do corpo sacrificado. (Coitadinha! Entregue ao cansaço, suas antenas e mandíbulas, vergadas, apoiavam-se na superfície dura da unha.)
  Reiniciei a andança, agora mais vagarosa; e ela permaneceu cabisbaixa, ainda nalgum tempo em que eu a transportava.
  Restava-me boa distância para completar a passeata e doravante não lhe tirei meus olhos. 

  (...)
  Agradável aragem nordeste abrandava a queimação do Sol, fazendo as alegrias de tantos quantos foram desfrutar das benesses daquelas horas matutinas, na maciez da areia branca, no frescor verde cristalino das águas.
  (...)
  Eia!... Finalmente, a socorrida começa a esforçar as asas! Um movimento débil, pequeno tremor; contudo, não suficiente para despegá-las do corpo.
  Examino-a:  é dessas melíferas rajadas; não tenho como defini-la se é das européias, ou da africana, ou da híbrida (para o leigo todas se assemelham); é pequena, se comparada às que em geral revoam por toda parte; daí porque eu tratá-la de "abelhinha".  "- É novinha. Talvez seja seu primeiro voo..."  - penso, enquanto a observo. 
 
As súmulas que falam sobre as Apis melliferas européias  dão-nas como abelhas geralmente tranquilas; já dos indivíduos da espécie africana, elas dizem: "Apis mellifera scutellata²: ...são mais agressivas (...) são menores (...) possuem visão mais aguçada (...) os ataques são, geralmente, em massa..."   
  Talvez se tratasse de uma scutellata; entretanto, o homem que caminhava na praia - satisfeito, alheado, feliz por ter salvado a pequena criatura, levando-a pousada na unha do dedo indicador da sua prestativa mão esquerda -, o homem era, na ocasião, não o adulto, mas o menininho (menininho que um dia fora) praticando boa ação escoteira. E (já que) menininho (portanto) desconhecedor dos (quem sabe) maus bofes daquela "avezinha" frágil, o que ele mais desejava era exibí-la às crianças todas pelas quais ia passando lado a lado, para mostrar-lhes aquelas corbículas prenhes de matéria-prima que a dedicada operária estava incumbida de levar à colmeia distante por obrigação de ofício. 
  ...Todavia, o "homem feito", ao notar as cestinhas rechonchudas de pólen (ou de resina, ou de que outra coisa fosse) "empurrou" o garoto, tomando-lhe o lugar e a fala, para logo murmurar: " - Mas, se é inverno, onde teria ela conseguido isto?..." (...Oh, racional e desligada coisinha de Deus! Então você desconhece que crianças chupam balas e sorvetes deixando restinhos por aí, sobras caídas, de enganosas doçuras?!... Oh, homem! são tantos os engodos que vamos impondo a nós mesmos, quanto mais às outras criaturas!... Você viu? duas gaivotas disputavam uma sacola plástica brilhosa como o dorso das corcorocas...)
  (...)
  Com movimentos lerdos, em esfregas pelo corpo e cabeça, os pares de pernas desocupados da abelhinha foram-na livrando aos poucos dos incômodos pegajosos que a manietavam. 

  Conseguiu despegar as asas umas das outras e as abriu à brisa, para melhor secarem, a modo dos urubus quando quentam sol (...não me ocorre melhor comparação). Mas aparentava continuar zonzeada, sem condições de voar.
  Eu mantinha meus olhos nela.
  Súbito, remeti-me àqueloutra abelhinha (a dos óculos, do livro, da varanda...). Deu-se, de imediato, na minha cabeça, a comparação entre as atitudes das minhas mãos direita e esquerda (não que eu quisesse estabelecer tal ou qual diferença de procedimento de ambas; afinal, elas, porque são minhas, ficam sujeitas aos meus bons e maus humores): 
  ...lá (no outono), a manzorra direita tentando agradar-me ia se impacientando na medida em que o tempo passava; 
 
...cá (no inverno), com evidente má intenção, a disfarçada canhota caprichava na macieza da lisonja. Percebi-lhe a manha, e a retundi, silencioso: " - Vai-te, sinistra pretensiosa: também tu não me enganas! Não me bajules!" 
  (...)
  Nas caminhadas, costumo assoviar ou cantar melodias duns e doutros dobrados (reminiscências da bandinha que sempre ouvi, locatária de quem jamais cobrei aluguel por ocupar meu coração). Pero, desde o minuto em que me envolvi com a pequeninha "inseta" (permitam-me o derivativo) calei cantos e assovios; caí em distraimento. Com isso, quase me esborrachei, quase caí de verdade, de fuças no chão, por um triz não acontecendo comigo um símile da história daquela decantada Therezinha de Jesus junto à qual se encontravam três cavalheiros. 

  Conto como foi: aproximávamo-nos do lugar onde eu pretendia fazer o desembarque da voante (local onde, eu supunha, a dita poderia se ajeitar melhor, esmerar-se nos arremates de limpeza das asas grudentas e dali partir célere para concluir sua missão), quando um banhistinha traquinas, refestelado na sua prancha de mini-surfista, por pouco não se embarafustou em minhas pernas, arremetido por onda mais impetuosa. Pois foi o bastante: nesse meu galeio de  "foi-por-um-triz-que-eu-não-tropiquei" a passageira... zássss!... aviou-se e... zússss!... desapareceu contra o vento, nem sequer me dizendo " - Bye, bye! Au revoir! Hasta la vista! Obrigado por tudo!"
 
Boboca, a manopla esquerda do "homem feito" ainda ficou com o indicador estendido, à maneira de como até agora viera, veículo transportador de ilusão.
  ...Por que ilusão?
  ...Ora! no fundo, no fundo, no âmago do seu ser, o "homem feito" desejava mesmo era compensar a maldade que fizera à abelhinha-cachorro quando a deixou ao vento. Então, estoutra abelhinha com que se deparara ele a levaria até a vegetação das dunas (estava tão próximo, não mais que trinta metros...) e a deixaria pousada nas folhagens, livre, para fazer o que quisesse... - livre inclusive dum peteleco mortífero que pudesse ser desferido sem mais nem menos pelo representante do mais disfarçado, mais cruel, mais desnaturado espécime vivente neste planeta áqueo, espécime a quem os estudiosos denominam "Homo sapiens".
  ...Com efeito, foi para não se arriscar a esse peteleco e quedar-se jazida, mortinha da silva, abatida pela fidelíssima protetora mão canhota, que ela preferiu fugir enquanto era tempo, furando a resistência do sopro nordeste.
  (...)

   Que terá sido dela?
  Voltara ao mar, com ideia de... (não me ocorre melhor pergunta...) de suicídio, por exemplo?...  
   ...Não creio. Tal só ocorre a quem não acha o que fazer... e ela ainda teria muito a realizar. 
  O homem ficou desapontado, com a sensação de não haver completado a boa ação. 
  O menino... sorriu.
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  É primavera e o vento nordeste peleja para desacumular nimbos trazidos pelo sudoeste e que, afinal, não caíram em chuvas.
  Enquanto eu passeio, refrescando os pés em tapete de águas rasas, relembro tão desinteressantes incidentes, com pretensão a falar sobre ilusões de homens e bichos. 
  ...(Chi! iludo-me; iludo-me, como só os bípedes pensantes têm tal capacidade. As outras espécies, todas as outras espécies, não curtem ilusões ou fantasias: são enganadas, simplesmente.)
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  "- Que terá sido das abelhinhas?" - perguntam-se ambos, homem e menino. Porém, suas atenções logo se voltam para as sete traineiras recém vindas do alto mar, que se juntaram à que as esperava à entrada da barra, onde agora estão, todas fundeadas, como em colóquio. 
  As poucas gaivotas que as sobrevoam, em voos altos, aparentemente sem menções  de mergulhos e sem grasnados eufóricos, talvez saibam a resposta de como foi a pescaria.
      

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Nov. 03, 2015


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(¹)Excerto de trabalho publicado pelo "CPT - Univ. Fed. de Viçosa,       MG".
(²)Excerto de trabalho publicado pela  "EMBRAPA - Governo Federal".                  
Guimaraens Esse
Enviado por Guimaraens Esse em 03/11/2015
Alterado em 29/01/2016
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